CONEN BAHIA

CONEN - COORDENAÇÃO NACIONAL DE ENTIDADES NEGRAS-FÓRUM BAHIA

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012


Fórum Social Mundial 2012                 

ESCRITO POR FREI BETTO  

Porto Alegre abrigará de 24 a 29 deste mês de janeiro, o FSM (Fórum Social Mundial) centrado no tema “Crise capitalista – justiça social e ambiental”. O evento é uma das atividades preparatórias da Cúpula dos Povos  da Rio+20, que se reunirá na Cidade Maravilhosa entre 20 e 21 de junho de 2012.
O FSM se realiza no momento em que vários povos se movimentam por liberdade e democracia, como ocorre no mundo árabe. No Ocidente, a crise do capitalismo suscita o movimento Ocupem Wall Street. As duas manifestações têm em comum clareza quanto ao que não se quer, sem, no entanto, apresentar propostas alternativas viáveis.
No último 15 de outubro, houve mobilizações em quase 1000 cidades de 82 países! No mundo andino, povos indígenas questionam o modelo capitalista de desenvolvimento e resgatam os valores do bem viver - sumak kawsay.
Como resultado da incompetência de um sistema que prioriza a acumulação privada da riqueza em detrimento dos direitos humanos, sociais e ambientais, o capitalismo conhece, agora, nova crise. Diante dela, a reação dos donos do poder é o samba de uma nota só: austeridade, cortes, aumento de impostos e desemprego, flexibilização das leis trabalhistas, congelamento de salários.
Salvam-se os bancos e dane-se a população. Mais miséria à vista; jovens sem perspectiva de futuro, condenados à droga e ao crime; fluxos migratórios desordenados.
Do lado da esperança, e após três décadas de globocolonização neoliberal, as manifestações sinalizam valores positivos como a empatia pelo sofrimento alheio, a solidariedade, a defesa da igualdade, a busca de justiça, o reconhecimento da diversidade e a preservação ambiental. Sem esse universo ético não há esperança de se construir um outro mundo possível.
É preciso reinventar a convivência humana. E, da parte dos donos do poder, não há nenhuma proposta fora da preocupação de não refrear a roleta do cassino global. A crise ambiental é ignorada pela ONU, pelos governos dos EUA e da União Europeia, e nada garante que a Rio+20 conseguirá reunir, como na Eco-92, chefes de Estado dos países do G8.
Mercantiliza-se a vida, destroem-se os ecossistemas, reduz-se rapidamente a biodiversidade. Em todo o planeta, acentuam-se os empreendimentos extrativistas, sem nenhuma preocupação com seus impactos sociais e ambientais. Áreas fundiárias são descaradamente transnacionalizadas em países do Terceiro Mundo.
Em Belém 2009 e Dakar 2011, o FSM deu passos significativos na busca de alternativas ao desenvolvimentismo e ao consumismo, tendo em vista a preservação ambiental. Agora, a luta social é oxigenada pela busca de democracia e soberania nos países árabes, e as amplas manifestações, na Europa e nos EUA, contra a lógica necrófila do neoliberalismo. 
Se outro mundo é possível, isso se dará a partir da convergência de todas essas mobilizações, da sincronia entre todos que lutam pela preservação ambiental, do diálogo entre as forças sociais e políticas convencidas de que dentro do capitalismo não há salvação para o futuro da humanidade.O FSM de Porto Alegre 2012 deverá ser o ponto de encontro de sujeitos políticos capazes de apontar uma saída para a crise e as bases de construção de um novo modelo civilizatório, no qual predomine a globalização da solidariedade. E dele poderão brotar propostas temáticas para abastecer aqueles que, em junho, se encontrarão na Cúpula dos Povos (Rio+20).
A dinâmica do FSM 2012 será à base de grupos temáticos, de modo a acolher experiências e contribuições dos participantes em torno de quatro eixos transversais: 1. Fundamentos éticos e filosóficos: subjetividade, dominação e emancipação; 2. Direitos humanos, povos, territórios e defesa da Mãe-Terra; 3. Produção, distribuição e consumo: acesso à riqueza, bens comuns e economia de transição; 4. Sujeitos políticos, arquitetura de poder e democracia.



A Revolta dos Malês
Durante as primeiras décadas do século XIX várias rebeliões de escravos explodiram na província da Bahia. A mais importante delas foi a dos Malês, uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da religião católica, que ocorreu em Salvador, em janeiro de 1835. Nessa época, a cidade de Salvador tinha cerca de metade de sua população composta por negros escravos ou libertos, das mais variadas culturas e procedências africanas, dentre as quais a islâmica, como os haussas e os nagôs. Foram eles que protagonizaram a rebelião, conhecida como dos "malê", pois este termo designava os negros muçulmanos, que sabiam ler e escrever o árabe. Sendo a maioria deles composta por "negros de ganho", tinham mais liberdade que os negros das fazendas, podendo circular por toda a cidade com certa facilidade, embora tratados com desprezo e violência. Alguns, economizando a pequena parte dos ganhos que seus donos lhes deixavam, conseguiam comprar a alforria.
Em janeiro de 1835 um grupo de cerca de 1500 negros, liderados pelos muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio, Pai Inácio, dentre outros, armou uma conspiração com o objetivo de libertar seus companheiros islâmicos e matar brancos e mulatos considerados traidores, marcada para estourar no dia 25 daquele mesmo mês. Arrecadaram dinheiro para comprar armas e redigiram planos em árabe, mas foram denunciados por uma negra ao juiz de paz. Conseguem, ainda, atacar o quartel que controlava a cidade mas, devido à inferioridade numérica e de armamentos, acabaram massacrados pelas tropas da Guarda Nacional, pela polícia e por civis armados que estavam apavorados ante a possibilidade do sucesso da rebelião negra.
No confronto morreram sete integrantes das tropas oficiais e setenta do lado dos negros. Duzentos escravos foram levados aos tribunais. Suas condenações variaram entre a pena de morte, os trabalhos forçados, o degredo e os açoites, mas todos foram barbaramente torturados, alguns até a morte. Mais de quinhentos africanos foram expulsos do Brasil e levados de volta à África. Apesar de massacrada, a Revolta dos Malês serviu para demonstrar às autoridades e às elites o potencial de contestação e rebelião que envolvia a manutenção do regime escravocrata, ameaça que esteve sempre presente durante todo o Período Regencial e se estendeu pelo Governo pessoal de D. Pedro II.
  
O Levante dos Malês 

João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 665p.
Acontecimento singular na história brasileira, uma revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835, o Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em nossa opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro do professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já clássico Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835) , editado pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense e há muito esgotado. Pois foi com imensa alegria que se recebeu a notícia de sua republicação pela Companhia das Letras. Uma edição revista e ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e acrescida de um glossário de termos religiosos muçulmanos, detalhadas fontes bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar de o Levante dos Malês se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e geralmente ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação existe mas é secundária. O Levante pertence, antes de tudo, à tradição de rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias, sendo a Rebelião Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos (daí o nome de Malê, como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia). Reis aponta ainda como fator significativo a forte presença em Salvador da escravidão de ganho (escravos que passavam o dia vagando pela cidade, prestando algum serviço ou vendendo mercadorias e obrigados a entregar a seus senhores um certo valor ao final do dia, podendo ficar com o excedente). É inegável a maior “liberdade” que esse tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta e o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade de Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até 600 participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se tornaram senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em todo o Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das classes dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas para impedir que outro movimento similar ocorresse. A começar pela repressão aos envolvidos, descrita com detalhes pelo autor. Grande parte deles foi condenada a penas de castigo (chibatadas) e prisão. Um número considerável (libertos em geral) foi deportado para a África (primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil) e uma menor parcela terminou condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos. Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana: majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas. O autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola (Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa do Ouro (Costa e Mina) [1]. O autor se refere, por fim, a uma parcela ínfima de crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria esmagadora era realmente de africanos. Quanto à condição social e de trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia um grande número de libertos (algo em torno de 60% e 40%, respectivamente). Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que apenas um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco melhor. As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à categoria de escravos de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através de um tripé: religião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele alude ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a revolta se deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a questão e um simples somatório de fatores se mostra, na realidade, uma interpretação que melhor contempla a complexidade do processo histórico que levou ao Levante. Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera criticamente as visões anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns elementos de outros autores, partindo sempre de um mergulho na sociedade baiana do período, tarefa até então não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença muçulmana que o distingue dos demais movimentos de africanos não pode ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos por Reis em depoimentos de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao mesmo tempo que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntese: o limite entre a identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável nos africanos da Bahia daquele período. A identidade étnica deles era extremamente dinâmica, transformando-se em algo diferente daquela que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava mais difundida em certas etnias, como no caso dos próprios nagôs e dos hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo não seja uma religião étnica [...], ele parece ter se tornado exatamente isso nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a identidade escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P. Thompson” (p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava.”
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de classe. O autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis para muitos. Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre o Levante, Reis realça a religião muçulmana como o seu motor principal, ressalvando não ser ele o único e que essa marca não significa que os malês estivessem dando prosseguimento à jihad africana em solo baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é pequena (algo em torno de 20%). Reis não considera isso relevante, afirmando que os próprios libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da condição de liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos estavam numa posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos no Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos e o possível massacre dos africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido como uma luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios participantes. O que isso significava? Significava que a revolta era uma luta dos africanos (escravos ou não) contra os “brasileiros” nascidos no Brasil (senhores ou não, brancos ou negros) e, eventualmente, contra os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e mulatos aliados dos brancos (identificação que provinha do fato de haverem nascido na “terra de branco”).
Essa intrigante divisão entre a “terra de branco” e a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última instância, ela deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi por causa dessa condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos para terra estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas os revoltosos não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização escravo/senhor, como o próprio Reis observa: “Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos” (p. 546). De qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, já que a questão do poder (e também social) se colocava para os seus participantes. O autor tem razão ao apontar esse aspecto e está fora de dúvida também que nessa reedição ele o trata de forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição do livro. O número consideravelmente maior de páginas faz de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa sobre o tema da revolta de 1835.
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Fabrício Pereira da Silva é mestrando do programa de pós-graduação em História Social da UFRJ.
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A Revolta dos Malês
Durante as primeiras décadas do século XIX várias rebeliões de escravos explodiram na província da Bahia. A mais importante delas foi a dos Malês, uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da religião católica, que ocorreu em Salvador, em janeiro de 1835. Nessa época, a cidade de Salvador tinha cerca de metade de sua população composta por negros escravos ou libertos, das mais variadas culturas e procedências africanas, dentre as quais a islâmica, como os haussas e os nagôs. Foram eles que protagonizaram a rebelião, conhecida como dos "malê", pois este termo designava os negros muçulmanos, que sabiam ler e escrever o árabe. Sendo a maioria deles composta por "negros de ganho", tinham mais liberdade que os negros das fazendas, podendo circular por toda a cidade com certa facilidade, embora tratados com desprezo e violência. Alguns, economizando a pequena parte dos ganhos que seus donos lhes deixavam, conseguiam comprar a alforria.
Em janeiro de 1835 um grupo de cerca de 1500 negros, liderados pelos muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio, Pai Inácio, dentre outros, armou uma conspiração com o objetivo de libertar seus companheiros islâmicos e matar brancos e mulatos considerados traidores, marcada para estourar no dia 25 daquele mesmo mês. Arrecadaram dinheiro para comprar armas e redigiram planos em árabe, mas foram denunciados por uma negra ao juiz de paz. Conseguem, ainda, atacar o quartel que controlava a cidade mas, devido à inferioridade numérica e de armamentos, acabaram massacrados pelas tropas da Guarda Nacional, pela polícia e por civis armados que estavam apavorados ante a possibilidade do sucesso da rebelião negra.
No confronto morreram sete integrantes das tropas oficiais e setenta do lado dos negros. Duzentos escravos foram levados aos tribunais. Suas condenações variaram entre a pena de morte, os trabalhos forçados, o degredo e os açoites, mas todos foram barbaramente torturados, alguns até a morte. Mais de quinhentos africanos foram expulsos do Brasil e levados de volta à África. Apesar de massacrada, a Revolta dos Malês serviu para demonstrar às autoridades e às elites o potencial de contestação e rebelião que envolvia a manutenção do regime escravocrata, ameaça que esteve sempre presente durante todo o Período Regencial e se estendeu pelo Governo pessoal de D. Pedro II.

  
O Levante dos Malês

Fabrício Pereira da Silva - 2004


João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 665p.
Acontecimento singular na história brasileira, uma revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835, o Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em nossa opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro do professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já clássico Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835) , editado pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense e há muito esgotado. Pois foi com imensa alegria que se recebeu a notícia de sua republicação pela Companhia das Letras. Uma edição revista e ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e acrescida de um glossário de termos religiosos muçulmanos, detalhadas fontes bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar de o Levante dos Malês se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e geralmente ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação existe mas é secundária. O Levante pertence, antes de tudo, à tradição de rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias, sendo a Rebelião Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos (daí o nome de Malê, como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia). Reis aponta ainda como fator significativo a forte presença em Salvador da escravidão de ganho (escravos que passavam o dia vagando pela cidade, prestando algum serviço ou vendendo mercadorias e obrigados a entregar a seus senhores um certo valor ao final do dia, podendo ficar com o excedente). É inegável a maior “liberdade” que esse tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta e o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade de Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até 600 participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se tornaram senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em todo o Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das classes dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas para impedir que outro movimento similar ocorresse. A começar pela repressão aos envolvidos, descrita com detalhes pelo autor. Grande parte deles foi condenada a penas de castigo (chibatadas) e prisão. Um número considerável (libertos em geral) foi deportado para a África (primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil) e uma menor parcela terminou condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos. Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana: majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas. O autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola (Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa do Ouro (Costa e Mina) [1]. O autor se refere, por fim, a uma parcela ínfima de crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria esmagadora era realmente de africanos. Quanto à condição social e de trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia um grande número de libertos (algo em torno de 60% e 40%, respectivamente). Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que apenas um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco melhor. As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à categoria de escravos de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através de um tripé: religião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele alude ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a revolta se deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a questão e um simples somatório de fatores se mostra, na realidade, uma interpretação que melhor contempla a complexidade do processo histórico que levou ao Levante. Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera criticamente as visões anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns elementos de outros autores, partindo sempre de um mergulho na sociedade baiana do período, tarefa até então não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença muçulmana que o distingue dos demais movimentos de africanos não pode ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos por Reis em depoimentos de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao mesmo tempo que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntese: o limite entre a identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável nos africanos da Bahia daquele período. A identidade étnica deles era extremamente dinâmica, transformando-se em algo diferente daquela que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava mais difundida em certas etnias, como no caso dos próprios nagôs e dos hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo não seja uma religião étnica [...], ele parece ter se tornado exatamente isso nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a identidade escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P. Thompson” (p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava.”
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de classe. O autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis para muitos. Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre o Levante, Reis realça a religião muçulmana como o seu motor principal, ressalvando não ser ele o único e que essa marca não significa que os malês estivessem dando prosseguimento à jihad africana em solo baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é pequena (algo em torno de 20%). Reis não considera isso relevante, afirmando que os próprios libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da condição de liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos estavam numa posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos no Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos e o possível massacre dos africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido como uma luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios participantes. O que isso significava? Significava que a revolta era uma luta dos africanos (escravos ou não) contra os “brasileiros” nascidos no Brasil (senhores ou não, brancos ou negros) e, eventualmente, contra os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e mulatos aliados dos brancos (identificação que provinha do fato de haverem nascido na “terra de branco”).
Essa intrigante divisão entre a “terra de branco” e a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última instância, ela deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi por causa dessa condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos para terra estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas os revoltosos não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização escravo/senhor, como o próprio Reis observa: “Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos” (p. 546). De qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, já que a questão do poder (e também social) se colocava para os seus participantes. O autor tem razão ao apontar esse aspecto e está fora de dúvida também que nessa reedição ele o trata de forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição do livro. O número consideravelmente maior de páginas faz de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa sobre o tema da revolta de 1835.
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Fabrício Pereira da Silva é mestrando do programa de pós-graduação em História Social da UFRJ.
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O Levante dos Malês



Fabrício Pereira da Silva - 2004

 Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 665p.
Acontecimento singular na história brasileira, uma revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835, o Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em nossa opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro do professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já clássico Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835) , editado pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense e há muito esgotado. Pois foi com imensa alegria que se recebeu a notícia de sua republicação pela Companhia das Letras. Uma edição revista e ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e acrescida de um glossário de termos religiosos muçulmanos, detalhadas fontes bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar de o Levante dos Malês se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e geralmente ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação existe mas é secundária. O Levante pertence, antes de tudo, à tradição de rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias, sendo a Rebelião Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos (daí o nome de Malê, como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia). Reis aponta ainda como fator significativo a forte presença em Salvador da escravidão de ganho (escravos que passavam o dia vagando pela cidade, prestando algum serviço ou vendendo mercadorias e obrigados a entregar a seus senhores um certo valor ao final do dia, podendo ficar com o excedente). É inegável a maior “liberdade” que esse tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta e o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade de Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até 600 participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se tornaram senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em todo o Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das classes dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas para impedir que outro movimento similar ocorresse. A começar pela repressão aos envolvidos, descrita com detalhes pelo autor. Grande parte deles foi condenada a penas de castigo (chibatadas) e prisão. Um número considerável (libertos em geral) foi deportado para a África (primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil) e uma menor parcela terminou condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos. Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana: majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas. O autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola (Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa do Ouro (Costa e Mina) [1]. O autor se refere, por fim, a uma parcela ínfima de crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria esmagadora era realmente de africanos. Quanto à condição social e de trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia um grande número de libertos (algo em torno de 60% e 40%, respectivamente). Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que apenas um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco melhor. As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à categoria de escravos de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através de um tripé: religião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele alude ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a revolta se deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a questão e um simples somatório de fatores se mostra, na realidade, uma interpretação que melhor contempla a complexidade do processo histórico que levou ao Levante. Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera criticamente as visões anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns elementos de outros autores, partindo sempre de um mergulho na sociedade baiana do período, tarefa até então não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença muçulmana que o distingue dos demais movimentos de africanos não pode ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos por Reis em depoimentos de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao mesmo tempo que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntese: o limite entre a identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável nos africanos da Bahia daquele período. A identidade étnica deles era extremamente dinâmica, transformando-se em algo diferente daquela que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava mais difundida em certas etnias, como no caso dos próprios nagôs e dos hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo não seja uma religião étnica [...], ele parece ter se tornado exatamente isso nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a identidade escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P. Thompson” (p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava.”
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de classe. O autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis para muitos. Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre o Levante, Reis realça a religião muçulmana como o seu motor principal, ressalvando não ser ele o único e que essa marca não significa que os malês estivessem dando prosseguimento à jihad africana em solo baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é pequena (algo em torno de 20%). Reis não considera isso relevante, afirmando que os próprios libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da condição de liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos estavam numa posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos no Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos e o possível massacre dos africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido como uma luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios participantes. O que isso significava? Significava que a revolta era uma luta dos africanos (escravos ou não) contra os “brasileiros” nascidos no Brasil (senhores ou não, brancos ou negros) e, eventualmente, contra os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e mulatos aliados dos brancos (identificação que provinha do fato de haverem nascido na “terra de branco”).
Essa intrigante divisão entre a “terra de branco” e a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última instância, ela deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi por causa dessa condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos para terra estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas os revoltosos não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização escravo/senhor, como o próprio Reis observa: “Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos” (p. 546). De qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, já que a questão do poder (e também social) se colocava para os seus participantes. O autor tem razão ao apontar esse aspecto e está fora de dúvida também que nessa reedição ele o trata de forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição do livro. O número consideravelmente maior de páginas faz de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa sobre o tema da revolta de 1835.
Fabrício Pereira da Silva é mestrando do programa de pós-graduação em História Social da UFRJ.

sábado, 14 de janeiro de 2012


O que é Rio+20? Em junho, o Brasil sediará a Rio+20, conferência da ONU que reunirá líderes do mundo todo para discutir meios de transformar o planeta em um lugar melhor para se viver. O evento será realizado no Rio de Janeiro, 20 anos depois da Eco92, que teve como protagonista uma menina de apenas 12 anos
Débora Spitzcovsky - Edição: Mônica Nunes  Planeta Sustentável- 29/07/2011
menos aA mais
Você já deve ter lido na internet ou visto na TV que, em 2012, o Brasil será sede de uma importante conferência da ONU - Organização das Nações Unidas*: a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, apelidada de Rio+20*. Mas você faz ideia do que acontecerá durante esse evento? Do que ele representa para o nosso futuro?

Em junho, líderes dos 193 Estados que fazem parte da ONU, além de representantes de vários setores da Organização, se reunirão para discutir como podemos transformar o planeta em um lugar melhor para viver, inclusive para as futuras gerações. Uma grande responsabilidade, não é mesmo? A ideia da realização dessa Conferência no Brasil foi do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, em 2007, fez a proposta para a ONU. E você sabe por que o evento recebeu o nome de Rio+20? Porque a reunião acontecerá no Rio de Janeiro, exatamente 20 anos depois de outra conferência internacional que tinha objetivos muito semelhantes: a Eco92, também promovida pela ONU, na capital fluminense, para debater meios possíveis de desenvolvimento sem desrespeitar o meio ambiente.

O evento rendeu a criação de vários documentos importantes - como a Agenda 21, a Carta da Terra e as Convenções do Clima e da Diversidade Biológica -, além de ter consagrado uma menina de - acredite! -, apenas, 12 anos.

Trata-se da pequena canadense Severn Suzuki, fundadora do movimento Eco - Organização Ambiental das Crianças, que ficou marcada na história da Eco92 ao juntar dinheiro, junto com três amigos - Michelle Quigg, Vanessa Suttie e Morgan Geisler* - para viajar para o Brasil e falar para os mais importantes líderes do planeta, na época. Em um discurso pra lá de emocionante, a menina pediu aos adultos mais respeito pelo mundo que eles deixariam para ela e suas futuras gerações. (Assista ao vídeo da apresentação de Suzuki na Eco92, no final deste texto).

Vinte anos depois, a Rio+20 reunirá os líderes de todo o mundo para fazer um balanço do que foi feito nas últimas duas décadas e discutir novas maneiras de recuperar os estragos que já fizemos no planeta, sem deixar de progredir. Mas pensar em alternativas para diminuir o impacto da humanidade na Terra não é responsabilidade, apenas, dos governantes: é nossa também. Afinal, todas as atitudes que tomamos no dia a dia - do tempo que demoramos para escovar os dentes ao meio de transporte que escolhemos para ir à escola - afetam, de alguma maneira, o planeta e, por consequência, nossa vida.

Por isso, no mesmo período da reunião oficial da Rio+20, o Rio de Janeiro sediará, também, a Cúpula dos Povos: um evento que contará com debates, palestras e uma porção de outras atividades, sobre os mesmos temas da Conferência da ONU, mas que serão promovidos por grupos da sociedade civil - como ONGs e empresas.

A ideia é que todos os setores da sociedade discutam, ao mesmo tempo, maneiras de transformar o planeta em um lugar melhor para vivermos. Afinal, a união faz a força, certo? E até mesmo quem estiver de fora dessas duas reuniões pode ajudar, pensando em maneiras de diminuir seu impacto na Terra. Que tal tomar banhos mais curtos? Ou desligar a TV, enquanto usa o computador e vice-versa? Pense em atitudes que você pode adotar para melhorar o planeta em que vivemos e compartilhe com seus amigos, pais e professores - e, também, aqui, com a gente! Você pode incentivar muitas outras pessoas a fazer o mesmo...

Para se inspirar, assista ao discurso da menina Severn Suzuki, na Eco92:



*Você sabia que hoje, quase vinte anos depois da Eco92, três dos quatro fundadores do movimento Eco, que juntaram dinheiro para Suzuki discursar na Conferência, continuam engajados em questões sociais e ambientais? Suzuki é ativista da fundação David Suzuki, criada pelo seu pai, e dá palestras no mundo inteiro sobre sustentabilidade. Morgan Geisler é integrante do Greenpeace e Michelle Quigg é advogada e trabalha na área de imigração, refúgio e justiça social. Legal, né?

sábado, 7 de janeiro de 2012



Estamos no ano em que se completa 124 anos do momento histórico que acabou juridicamente com a idéia de servidão do negro pela coroa de Portugal. Princesa Isabel assina um documento, que em tese, libertava àqueles dos quais descendemos quase três séculos de servidão escrava. Será que aquela assinatura resolveu a situação da população advinda de África e até dos seus descendentes que vivem neste país? Qual foi a verdadeira razão que motivou a princesa subscrever a Lei?

A assinatura da lei Áurea no dia 13 de maio de 1888 serviu para libertar cerca de 750 mil escravos que ainda existiam no Brasil e proibia a escravidão. Foi um dos fatos de maior alcance e visibilidade no país, no que se refere ao tema das disputas pela memória e de seus significados políticos, depois disso só o movimento das Diretas Já que culminou no fim da ditadura militar, pode ser tão igual comparado.

Essa data e o 20 de novembro colocam a população a refletir sobre a situação do povo preto no país.

Rediscutir o passado nunca foi, nem nunca será uma tarefa fácil. Principalmente o passado de uma parcela da população brasileira que teve documentos queimados (nomes, origens, legados foram obliterados) e as suas as revoltas eram e são marginalizadas.

É a partir de meados do século 18 que um discurso abolicionista vai emergir no pensamento ocidental, questionando progressivamente a legitimidade da escravidão, unindo-se ao parlamento. No Brasil, vai estar presente desde finais deste século, no questionamento da continuidade do tráfico de escravos e na crítica às distinções raciais entre a população livre, empolgando as camadas populares urbanas presentes nos setores mais radicais que se ligaram às lutas pela emancipação política e econômica.

Vale lembra que com o fim do tráfico da população negra de África, em 1850, elevou-se o preço do cativo, tornando seu acesso restrito às camadas superiores da agricultura de exportação, golpeando de morte esta cumplicidade do conjunto da população livre com o trabalho servil, construindo as bases para que o abolicionismo se tornasse um grande movimento popular. Desde então, a crescente pressão pela alforria, no seio da população escravizada, só fez aumentar a presença afrodescendente na população livre de uma maneira geral. Precedida por fugas em massa, a Lei de 13 de maio nada mais fez do que reconhecer formalmente a liberdade, já conquistada de fato nos meses precedentes, culminando o maior movimento de desobediência civil da história brasileira.

Mas como diz um provérbio africano: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.

Independentemente disso, não se pode deixar de reconhecer que a abolição não resolveu diversas questões essenciais acerca da inclusão da maior camada populacional na sociedade brasileira. Depois da lei Áurea, o Estado brasileiro tomou poucas medidas que favorecessem sua integração social, abandonando-os à própria sorte. De lá pra cá só consigo lembrar a criação da SEPPIR, Lei 10639/03 logo depois substituída pela lei 11645/08, que inclui a cultura indígena no currículo escolar e o estatuto da Igualdade Racial, esse último com severas criticas por grande maioria do movimento negro.

É hora de comprometermos com uma reflexão constante sobre nossas práticas, como muitos antes de nós o fizeram. Vamos construir, e (re) construir o negro e a negra diariamente, questionando o nosso passado e traçando metas para um futuro mais justo.

O estado brasileiro precisa assinar um documento que se tenha igualdade na diferença, respeito à diversidade humana e a promoção do desenvolvimento humano.

A população e em especial o movimento negro com certeza continuarão nas lutas: Pela aprovação dos estatutos de promoção da igualdade racial em todos os estado, pela real aplicação do ensino e da cultura africana nas escolas e nas universidades, pelo o acesso ao trabalho e salários iguais para todos/as, por uma melhor abordagem policial e pelo fim do extermínio da juventude negra, pelo fim do trabalho escravo que ainda existe em todo continente, na luta por um currículo escolar menos eurocêntrico e mais multicultural e multirracial, por melhores livros didáticos e por um ambiente racialmente mais democrático nas escolas.

Continuemos a considerar o 20 de novembro como a grande data de celebração no Brasil de uma comunidade étnica - a dos descendentes de África que aqui chegaram escravizados. Data do assassinato de Zumbi, símbolo poderoso para sinalizar as condições de desigualdade em que a maioria dos africanos/as chegou ao Brasil e para atuar como catalisador na luta contra a discriminação racial daí decorrente. Líder do maior e mais duradouro quilombo do Brasil colonial. Zumbi dos Palmares se apresenta hoje como o grande herói da resistência à escravidão, verdadeiro arquétipo da não submissão dos/as escravos/as africanos/as ao cativeiro.

Como descendentes de África. Somos a prole de homens e mulheres dignos arrancados de seus lares e acorrentados em navios como animais. Somos os herdeiros de um grande e explorado continente. Somos os herdeiros de um passado com os maiores crimes aos direitos humanos e maior chacina da humanidade. Não devemos ter vergonha desse passado. Devemos ter vergonha sim, daqueles que se tornaram desumanos a ponto de torturar-nos, roubar nossa cultura e se enriquecerem com o nosso suor.

*Freitas é filho de Osún, Educador Social, Estudante de Ciências Sociais pela UFBA, Coordenador de Projetos da Coordenação Nacional de Entidades Negras e Filiado ao Partido dos Trabalhadores.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

PERSONALIDADES NEGRAS(OS)

"Dia virá em que os homens reconheçam ,que são todos irmãos"
 Maria Firmina dos Reis(1825-1917) considerada por alguns autores como a primeira romancista brasileira.Em 1959 publicou Úrsula o primeiro romance brasileiro anti-escravagista ,e o primeiro  escrito por uma mulher no Brasil.Maria Firmina dos Reis é considerada a Sacerdotisa das Lágrimas da Literatura Brasileira.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

20 anos de lutas e vitórias


Os 20 anos da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen) foram comemorados na noite de quinta-feira (17), no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador. A solenidade foi iniciada com representantes e integrantes de entidades do movimento negro na Bahia e em outros estados entoando o Hino Nacional da África da Sul, cuja letra começa com o verso “Deus abençoe a África” e prossegue pedindo a proteção divina e proclamando a liberdade.
A atuação da Conen e os esforços da entidade na luta contra o racismo e em prol de melhores condições de vida para a população negra foram destacados pela vereadora Marta Rodrigues (PT), que requereu e presidiu a sessão especial.
Trechos de manifestações de rua e eventos promovidos pela Conen que valorizavam a cultura baiana com sua clara influência africana foram exibidos em um documentário sobre o dia a dia e vivências da instituição.
Marta Rodrigues ainda ressaltou a força do povo negro, mencionando ícones do movimento de resistência e da independência da Bahia que permeiam a história, como Zumbi dos Palmares, a guerreira Dandara, a heroína Maria Felipa e a revolucionária Luiza Mahin. “Essa história nos orgulha”, disse a vereadora.
Segundo o coordenador nacional da Conen, Gilberto Leal, existem hoje no Brasil mais de mil organizações negras, das quais 400 são filiadas à entidade nacional.
Convidada especial da sessão comemorativa, a deputada federal Benedita da Silva (PT) reafirmou a necessidade de inclusão social da comunidade negra. “Precisamos de mais saúde, mais emprego e mais oportunidades”, disse a parlamentar, que fez um resumo das participações relevantes da Conen nesses 20 anos.